terça-feira, 31 de julho de 2012

Medicina, Médicos e Sistemas de Saúde


            O nosso país viveu uma greve dos médicos com significativa adesão mas que muito provavelmente uma significativa parte da população não compreendeu, a qual apresentava como bandeira a defesa do Serviço Nacional de Saúde.
            A greve é um direito e uma forma de luta prevista na constituição visando normalmente a melhoria das condições de trabalho do grupo profissional em causa e também neste caso a principal reivindicação era a defesa das carreiras médicas.
            Assistimos actualmente a uma industrialização da medicina, à instituição duma medicina “low-cost” com a consequente desvalorização do acto médico, num processo contínuo e progressivo de “operarialização” da medicina, esquecendo que o único funcionário que assume a responsabilidade de fazer um diagnóstico e instituir um tratamento é o médico, pelo que fazer um sistema de saúde contra este grupo profissional não me parece fazer muito bem à saúde.
            O exercício da medicina é actualmente uma actividade complexa exigindo um leque extenso de conhecimentos científicos amadurecidos pela prática clínica de modo a conseguir descodificar um conjunto de sinais e sintomas no sentido de construir um diagnóstico capaz de alicerçar um tratamento visando minorar o sofrimento do doente, tarefa delicada e de grande responsabilidade em que qualquer passo em falso pode originar resultados catastróficos.
            O saber morre connosco e se não houver mecanismo da sua transmissão intergeracional ele perde-se fatalmente no horizonte do tempo. Defender as carreiras médicas é garantir que o saber acumulado ao longo de milhares de anos não se perca e seja transmitido às novas gerações de modo a ser ampliado e ele próprio fonte de novo saber.
            O direito à assistência médica está consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nomeadamente no seu artigo 25, sendo um dos pilares dos estados como os entendemos hoje, democráticos.
            O direito à assistência médica, tal como qualquer outro direito não é inato, sendo antes fruto de conquistas muitas vezes arrancadas a ferros e com sacrifício de vidas humanas, variando de acordo com a comunidade geográfica e social a que diz respeito e com os valores vigentes na época.
           A Medicina com carácter científico começou na Grécia com Hipócrates. Galeno pegou nos seus ensinamentos e deu-lhes continuidade no princípio da era Cristã. Na Idade Média curar doenças era tarefa das ordens religiosas, o que fazia algum sentido pois nessa época era atribuída essencialmente causa divina às doenças, sendo desse tempo as leprosarias.
          Os hospitais surgiram na continuidade de estruturas de apoio aos peregrinos sendo nesse tempo a pequena cirurgia praticada por barbeiros, uma vez que as ferramentas utilizadas serviam para as duas funções. No virar do primeiro milénio os escritos de Hipócrates ganharam de novo valor e a Medicina começou a ser estudada nas Universidades. Foi com o Renascimento que a Medicina ganhou uma dimensão superior e são dessa época muitos nomes que contribuíram para o seu grande avanço.
         No século XIX a Medicina entrou definitivamente no domínio científico. A assistência médica era até então um privilégio reservado essencialmente às classes mais abastadas pois tinha de ser paga pelos próprios, podendo ainda ter acesso a ela através de associações com carácter mutualista, as quais formavam um sistema de protecção social básico dos membros participantes que se entreajudavam em situações de doença, invalidez, viuvez desemprego, orfandade, ou então dependente da acção de beneficência das ordens religiosas, no caso dos mais necessitados.
         A revolução industrial e a percepção dos elevados custos associados à doença dos trabalhadores, ou à sua morte que originavam importantes perdas de produtividade estiveram na base dos primeiros sistemas de previdência.
O primeiro serviço de Saúde começou na Alemanha com Bismarck, com os seguros de doença obrigatórios para os trabalhadores por contra de outrem, criando um modelo que ainda vigora, sobre outras formas, em determinados países.
         No pós-guerra foi instituído na Grã-Bretanha o modelo idealizado por Beveridge que levou ao serviço nacional de saúde daquele país onde o financiamento deixou de ser feito baseado em seguros para passar a ser feito directamente através do orçamento geral do estado por via dos impostos.
        O modelo britânico foi adoptado após o 25 de Abril para criar o nosso Serviço Nacional de Saúde, actualmente de baixo de fogo devido aos cortes que o pretendem racionalizar para em seu nome o racionar no seu acesso aos cidadãos.
        O encapotado racionamento do SNS tem duas vertentes, a do equilíbrio das contas públicas e a da criação dum novo ramo de negócio que muito interessa ao sector financeiro que nele investiu milhões. É muito diferente aplicar uma política de saúde baseada no interesse público ou no interesse financeiro, se bem que ambas tenham de estar apoiadas numa lógica de custo-benefício de modo a garantir a sua sustentabilidade.

Sem comentários:

Enviar um comentário